REVISTA DIÁLOGOS NUR

Ilustração: Eloar Guazzelli

REVISTA DIÁLOGOS NUR

Nur, luz em árabe. Inauguramos dentro do programa da 17ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, uma seção especial, Nur, com uma entrevista e dois artigos inspirados nas temáticas dos filmes. O desejo é ser uma luz a refletir além do escuro do cinema. Mostrando, debatendo e instigando ao conhecimento da deslumbrante cultura árabe.

MEU MUNDO DESAPARECEU 

 

Quantos rostos hão de se conservar, intactos, na memória da gentes? Se caminhamos irremediavelmente para o nada, esbatidos no assombro, como não provarmos comoção, diante da esperança, que se confundiu com uma cidade e que jurou a permanência de incêndios, rostos e temporais? Como não provarmos comoção diante da figura, que se perde, afogada, nas ondas do tempo, quando uma cidade insiste com o corpo glorioso? E os mortos redivivos, soerguidos, revestidos de espera”.

Marco Lucchesi, trecho do livro “Os Olhos do deserto”. 

 

O filme que abre a Mostra Mundo Árabe de Cinema, em sua 17º edição, “Caixa de Memórias” é um filme acima de tudo afetivo e inventivo na linguagem. Profundamente comovente, a obra dos diretores libaneses Joana Hadijthomas e Khalil Joreige mergulha nos cadernos de memórias da diretora e nos faz pensar em outras paisagens, permitindo ampliar nossa percepção sobre ação, revolta, dor e memória. 

 

O trabalho, enquanto experimentação política e artística, é construído com colagens, animação e uso de multimídias, que nos leva a viajar no tempo e no espaço, e turva a noção da fronteira entre vida e ficção. 

 

Para melhor compreender o processo criativo, suas inspirações e como se deu a produção visual, entrevistamos o casal Joana e Khalil. A conversa, feita pela plataforma zoom, da casa deles nas montanhas perto de Beirute, aconteceu dias antes do início da 17ª MMAC em SP.

 

Como vocês lidam com os sentimentos e memórias vindas do Líbano? Essa mistura de coisas boas e ruins vindas daí?

 

Khalil – Uma boa parte do nosso trabalho, é trazer uma determinada situação para mostrar a complexidade desse sentimento tão misturado. Isso se nota no filme com o caderno de anotações da Joana (uma espécie de diário ilustrado), quando ela percebe o quanto esses sentimentos mudam rapidamente e mostramos um gráfico de humor que sobe e desce. Isso é o mais difícil da nossa prática: mostrar a complexidade das situações. 

 

Quais as diferenças dos sentimentos dos libaneses fora e dentro do Líbano?

 

Joana – No exílio você tem um imaginário de visões, imagens que não estão exatamente conectadas com a realidade, geralmente é o que foi transmitido por sua família: histórias contadas por seus pais, ou histórias lidas em livros, ou vistas em filmes. Essas histórias se avolumam e quando você é criança você tem fantasias, muitas vezes idealiza o que seus pais dizem quando você está vivendo no exterior. Muitos libaneses deixaram o seu país e nunca mais voltaram. A diáspora libanesa é fascinante, é enorme no exterior e criou um outro Líbano que, algumas vezes, cresce na sua imaginação, mas não é realmente o Líbano que nós, aqui dentro, vivemos. 

 

A concepção da linguagem gráfica como veio? Ela serve também para reforçar a ideia de recuperar memórias?

 

Joana – Isso veio do caderno de anotações que eu escrevi, nos anos 80, para a minha melhor amiga, mas também veio de fotos de Beirute tiradas por Khalil durante alguns períodos de tempo. Quando eu e Khalil redescobrimos esses cadernos, ficou muito claro que nós desejávamos encontrar as novas gerações para reativar esse passado.  Tudo é um diálogo visual entre o que foi escrito e as imagens. Isso foi muito desafiador para nos nós: queríamos que se transformasse num tipo de filme dentro do filme, uma história de fotografias, e nós usamos muitas mídias diferentes e formas diferentes de tirar fotografias. Khalil tirou quase 10 mil fotos do elenco para que ele tivessem naturalidade, nós criamos esse universo.  

 

Khalil– Nessa estrutura que criamos, você não tem a sensação de que é feito em pequenas partes, uma por uma. A sensação é de um mundo real, um universo completo, isso também é graças aos cadernos de Joana e esse arcabouço … Isso é muito importante porque é algo feito a mão, somos muito heterogêneos, exatamente como nossas memórias. São feitas de coisas como cheiros e  toques, tudo isso ainda está lá. Se você observar no início do filme, a personagem Alex (interpretada por Paloma Vauthier) arranha um stick de morango que ainda tem cheiro, isso existia nos anos 80, e quando você arranhava ainda tinha efeito, tudo é sobre como você reativa esses efeitos.  

 

Joana – Você tem que ter a arquitetura de sons, mensagens gravadas, cadernos, imagens, voice over… e tudo isso você tem que ser capaz de comunicar, não apenas Alex como adolescente, mas também a ela como espectadora, algo que realmente a faça se mexer. Nós queríamos fazer isso como uma experimentação artística, de um modo que ela poderia ver e imaginar porque deve ler ou escutar essas gravações, nós queríamos que isso funcionassem como algo artístico. 

 

Khalil – Porque assim seria mais divertido e prazeroso e encarnamos isso. Tudo é sobre intensidades e como todas essas memórias antigas e imaginações são mesclados vindos de diferentes mídias.  Está conectado com o início do cinema que começou como animação, como uma sequência de fotos. Até mesmo no processo, como você produz, nos voltamos para o início do cinema.

 

Vocês sabem que no Brasil há milhões de descendentes de sírios e libaneses, são muitas memórias. Que acham de filmar aqui?

 

Joana – Temos o sonho de visitar o Brasil! É sempre fascinante entender a história dessas famílias todas, que saíram daqui, como sobreviveram, como encararam a nova vida, as próprias atrizes tiveram que pensar sobre isso indo para Montreal (onde parte do filme foi rodado). São mulheres que saíram do Líbano e nunca voltaram, nós trabalhamos muito esse sentimento com as atrizes. Elas não sabiam quando a gente começava a filmar e qual a cena que iríamos filmar naquela hora. Para elas era realmente um processo, uma jornada vivenciada no momento. É muito emocionante quando você viaja pelo mundo e vê todos esses libaneses, tentando um novo começo em outro país, isso é um ciclo contínuo de voltar ao Líbano, exílio, voltar… – para nós, esse ciclo move o filme. Como você vive o seu presente se você não tem acesso ao seu passado? 

 

 FORA DO LUGAR 

 

Quando há alguns anos encontrei Mohamad Al Tamimi, um veterano combatente palestino, chegado ao Brasil em 2005, pedi que contasse sua história para um projeto de livro biográfico. Com a serenidade de um sobrevivente, ele respondeu ao meu pedido: “não posso contar a minha história sem contar primeiro a história da Palestina”. Percebi, naquele momento, que não havia diferença entre o seu destino, marcado pela despossessão e pelo exílio, e o destino de sua terra. O mesmo acontece no filme “O Estrangeiro”, dirigido por Amir Fakher el Din. A obra retrata alguns dias na vida do angustiado Adnan, dono de um pequeno sítio nas Colinas de Golã, parte da Síria hoje ocupada por Israel.  Médico formado na Rússia, ele não consegue exercer seu ofício em seu local de origem. O personagem vaga perdido em si, vendo-se como um estrangeiro em sua própria terra que há muito não é mais a mesma, busca alívio no álcool e se perde em reações infantis como provocar inutilmente os soldados da ocupação. Adnan vive a angústia de uma existência sendo diluída, roubada, enquanto ao seu redor poucas coisas florescem. Em uma cena emblemática, seu pai, propietário de um estábulo, tenta inultimente tirar leite de uma vaca, de tanto forçar a coleta, o animal acaba por expelir sangue do úbere. Tudo está se esgotando, não há nada mais a tirar dali, da terra só sai sangue. A dor existencial do médico não é apenas individual, é dor da existência coletiva, a mesma sofrida na Nakba pelos palestinos, vítimas de um processo de colonização que lhe nega a humanidade. A representação dessa vivência traumática coletiva e como ela se expressa individualmente, esse sentimento de inadequação e de busca permanente da recriação, é uma marca persistente do cinema e das artes de vários países do Oriente Médio. É assim nos filmes dos palestinos Elia Suleiman, especialmente em “O Tempo que Resta” e “O Paraíso Deve ser Aqui”; de Anne Marie Jacir, de Larissa Sansour e do próprio pensador palestino Edward Said. Em sua autobiografia, “Fora do lugar”, Said expressou com pontas de ironia esse sentimento compartilhado por tantos de seus compatriotas: sentir-se um estrangeiro onde quer que vá, a sensação de deslocamento fez-se indelével. Da mesma maneira estão imersos nas consequências do colonialismo os personagens de “O Salão de Huda”, de Hany Abu-Assad, “Amira”, de Mohamad Diab e “Farha”, da diretora estreante Darin Sallam, todas as obras presentes na atual Mostra Mundo Árabe de Cinema. Se no cinema de Assad e Diab temos personagens agindo como lhes é possível agir, dentro de um regime de ocupação estrangeira, e procurando por uma saída próxima ao desespero; em “Farha” vemos uma menina impotente trancafiada em um porão, vendo tudo ser destruído à sua volta e se refugiando nas lembranças do pouco que restou de sua antiga vida.  

 

Nos momentos derradeiros do filme “O Estrangeiro”, Adnan, indaga à sua esposa, que busca um exílio voluntário como alternativa a vida exaurida e sem perspectivas nas Colinas de Golã: “Layla, você não está com medo de que as macieiras perderão seu sabor se elas crescerem em outro solo?”. Há beleza em outro lugar, se esse lugar não nos pertence? Pode haver refúgio seguro e reconfortante longe dos nossos corações? Ele se recusa a deixar a sua terra e seu pomar de maçã e, num acontencimento extraordinário que o envolve completamente, toma para si a missão de acolher um jovem sírio fugido da guerra e com ferimentos graves. Não há redenção ou alívio no gesto, mas há um caminho a seguir nessa acolhida, que nem a morte barrará. Com o combatente sírio no colo, cujos pais nasceram nas Colinas de Golã, Adnan vai em direção as antigas terras da família do jovem para lá enterrá-lo. Não para satisfazer um último desejo de um moribundo, mas dele mesmo: recolocar-se em seu próprio mundo. O mundo onde as maçãs tem mais gosto. Assim descobre caminhos, saídas, e um encantamento, que alivia e fortalece. Quem sabe o mesmo que nos encanta quando ouvimos poetas como o palestino Mahmud Darwish: Sempre que te enfurnares na tua solidão, como aquela árvore, as saudades com materna ternura te levarão a seu país de fibras transparentes, leves, que há sim um país de saudades, uma família, uma ikebana selvagem. Há saídas e caminho nas  imagens, no canto e na dança dos expatriados, dos renegados, dos vencedores na derrota, contando suas histórias que envolvem até a mais dura rocha de Jericó. 

Jerusalém, Damasco, Beirute, há um país das saudades onde há a permanente presença da ausência. 

 

EGITO E O MUNDO ÁRABE: 

OS MICROCOSMOS SOCIAIS NAS TELAS

 

 

Uma penitenciária onde os presos vivem em péssimas condições, sofrem maus tratos de toda a natureza, são vítimas da repressão e corrupção policial; lá fora não há perspectiva, se saírem encontrarão abandono e preconceito. É um descrição muito familiar, não? Podemos ver isso todos os dias nos telejornais ou ler num livro de Drauzio Varella. Mas o filme “Sharaf”, baseado no romance homônimo de Sonallah Ibrahim e dirigido pelo egípcio Samir Nasr, está ambientado num país árabe. A princípio a trama se passaria no Egito, mas com o passar do tempo e acontecimentos vertiginosos da primavera árabe, o  diretor percebeu que a história de um jovem preso por um crime cometido em defesa própria, tinha muita similaridade com a realidade de vários países do Oriente Médio e Norte da África: 

 

       “ O filme é uma adaptação do romance de Sanallah Ibrahim, um romancista muito conhecido no Egito. Esse livro é um resumo fascinante da realidade, dos problemas e da alma egípcia, e de como nós lidamos com os nossos problemas. Eu pedi permissão para Ibrahim para adaptar o romance e começamos a escrever juntos o roteiro. Isso foi em 2009, então “Sharaf” tem uma longa história. Nessa época a primavera árabe ainda não tinha acontecido e o filme tratava de muitos problemas daquele tempo. Quando estouraram as revoltas no mundo árabe, nós paramos o projeto por um ou dois anos, sentimos que filme ficara ultrapassado porque falava sobre o regime de Mubarack e que foi varrido do poder. Depois desse tempo, percebemos que nada havia mudado de verdade e resolvemos continuar com o projeto, para ser rodado no Egito, com atores e produtores locais. Porém em 2019, quando iríamos começar as filmagens, não conseguimos permissão da censura egípcia, tudo estava mais repressivo naquele momento. Tivemos que passar locações para a Tunísia e eu e Sonallah  Ibrahim mudamos o roteiro, para não só falar do Egito mas de todo o mundo árabe. Descobrimos durante a primavera árabe que os problemas eram muito parecidos em todo o mundo árabe. A proposta se ampliou. Se a gente se perguntar “onde é essa prisão?”, eu não consigo localizá-la num lugar específico, é mais um estado de espírito. Nesse momento decidi ter atores de vários países, o ator principal, Ahmad Al Munirawi, é um palestino de Gaza e temos gente do Líbano, Tunísia, Síria, Egito, Argélia, Líbia. Temos diferentes sotaques para diálogos escritos originalmente em árabe egípcio, mas que os atores adptaram ao seu modo. Foi algo que nunca havia sido feito antes no cinema árabe.”

 

Embora com grande volume de filmes de entretenimento, como comédias e musicais, a mais antiga e atuante produção cinematográfica do mundo árabe, a egípcia, tem se caracterizado nos últimos anos, em filmes como “Clash”, “Cairo 678”, “Edifício Yacoubian”; por colocar em cena a relidade social e política do país e as diversas fraturas do interior de sua sociedade. Vê-se frequentemente: conservadorismo religioso x intelectualidade laica, alienação x politização, polícia x povo, e também denúncias importantes sobre opressão de gênero.  Esse dinâmico painel social e ideias opostas colocadas em choque, também estão presentes em “Sharaf” seguindo tradição recente dos egípcios, conforme discorre Samir Nasr:  

“A partir da revolução de 1952 (que derrubou o governo do Rei Farouk aliado do colonialismo inglês) e até mesmo um pouco antes, a temática do nosso cinema começou a mudar, produzindo filmes mais realistas, que mostravam a realidade social, como “The Sin”, de Henry Barakat e “Cairo Central Station”, de Youssef Chanine. Se você é cineasta e quer fazer filmes com algo relevante relacionado com o que você vê e sente todos os dias, você leva para sua obra essa realidade. “Clash”, de Mohamd Diab, por exemplo é uma reação ao que aconteceu depois da revolução de 2011 (quando o presidente Hosny Mubarack foi deposto), e reflete aquele momento. Para ser honesto, filmes como esse e como “Edifício Yacoubian”, de Marwan Hamed ou “Cairo 678” (também de Mohamad Diab) exigem muita liberdade artística e eu duvido que hoje eles seriam liberados pela censura. Nos últimos cinco ou seis anos temos feito menos filmes críticos como esses no Egito.”

 

Apesar da repressão, os filmes com abordagem crítica da sociedade e da política no mundo árabe continuam, de uma forma ou de outra, sobrevivendo, e alguns caminhos vão se abrindo, não é uma realidade monolítica. O filme “Sharaf” foi convidado para o primeiro Red Sea International Film Festival, em Jedah, Arábia Saudita, surpreendendo até o próprio Samir Nasr, por ser exibido num país social e politicamente muito fechado. Na atual Mostra Mundo Árabe de Cinema de SP temos o filme marroquino “Jahilya”, de Richam Lasri que, com humor e uma narrativa quase surreal, faz uma crítica aguda ao machismo da sociedade local tocando também, de forma sutil, na questão da obediência restrita a uma hierarquia política; além desse, há produção tunisiana “Comunhão” de Nejib Bekaldhi. Rodado em 2020 durante a quarentena, “Comunhão” trata da relação de um casal onde o homem tem problemas psiquiátricos, e acaba por refletir, numa obra pouco convencional, alguns dilemas da atualidade, não só da Tunísia mas comum a várias partes do mundo: diferenças sociais, degradação do meio ambiente e ascensão de ideias anticientíficas e negacionistas. São filmes que, como “Sharaf”, nunca se tornarão obsoletos ou mesmo vistos de forma nostálgica, não pertecem a um passado a ser idealizado. São reflexos de uma época e em determinado espaço de territorial, mas tratam, com inventividade, questões universais; vistas ora de forma dura e crua, ora com delicadeza e poesia.